sexta-feira, 12 de março de 2010

O argumento do "Fine Tuning" desmistificado

O "Fine Tuning" é um argumento de intencionalidade baseado na aparente organização e "afinação precisa" do universo. Chamo argumento de intencionalidade porque é a atribuição de intenção ao facto de o universo ser regido por leis e constantes que se não fossem exactamente estas, o universo era muito diferente.
Se as leis fossem apenas ligeiramente diferentes, e as constantes conhecidas apenas ligeiramente alteradas, uma qualquer, o universo teria uma aparência absolutamente diferente. Podia ser tudo só protões por exemplo. E no entanto é de tal forma que parece desenhado especificamente para a existência humana - é o chamado principio antrópico.
O facto de este universo ser como é e não de outra maneira, dizem os crentes, é a prova que ele foi criado com um intenção. O céptico responde que se o universo fosse de outra maneira, nenhum de nós estava aqui para fazer a pergunta, pelo que não deveria ser motivo de espanto o universo ser de modo que permita a existência de vida inteligente.
E eu naturalmente, estou de acordo com o céptico. Chama-se a isto o princípio antrópico fraco. E se assim não fosse teríamos de concluir que o universo foi desenhado não para existir o homem mas sim para existirem parasitas. De facto, um ténia poderia gabar-se que o intestino humano parece especialmente concebido para que ela exista e o universo concebido especialmente para que existam intestinos humanos. Isto se levar-mos a sério a questão da intencionalidade.
Por outro lado, a situação é um bocado análoga a perguntar porque é que pi tem o valor que tem. É porque não podia ter outro. Se não, não era uma esfera. O crente argumentará que existem outras constantes que parecem ter uma origem mais arbitrária e portanto poderiam ser de outra forma. Para além de eu não saber se podiam ou não ter outra forma, uma vez que tenho de dizer que em alguns casos não posso provar que podiam, apenas posso dizer que é tão legitimo dizer que podiam como não podiam.
Mas nem é este o meu argumento principal. O meu argumento principal é que essa intencionalidade tem origem na mesma tendência humana de atribuir intenção a outros fenómenos naturais, e que não há nada de racional acerca disso. E que sendo esta a explicação mais simples e plausível, não devemos partir para outra sem provas.
A atribuição de intencionalidade a fenómenos naturais esta bem documentada. Para além do "fine tuning" que é dos últimos redutos, podemos ver como o vento, os trovões, a chuva, a vida, a sorte, a doença, etc, foram todos em dada altura explicados por vontades de deuses, duendes ou demónios. Conforme fomos compreendendo melhor estes fenómenos e os fomos capazes de explicar de uma forma mais precisa, fomos empurrando a intencionalidade para outras coisas que ainda não podíamos explicar.
Provavelmente a atribuição de intencionalidade à natureza foi muito útil. Durante milénios foi a melhor explicação possível, o que terá proporcionado alguma sensação de controle. Por outro lado, identificar intenção num fenómeno desconhecido, deverá ter salvo muitas vidas. Porque mais valia elevar o nível de alerta para um fenómeno natural, estar enganado mas sobreviver, do que considerar que determinado fenómeno era devido ao acaso e perecer nas garras de um predador com intenções homicidas (1). Ter medo do escuro, ver formas nas sombras ao luar, atribuir intenção a sons e barulhos, terá salvo muitas vidas e terá sido por esta razão seleccionado positivamente ao longo da evolução. E terá sido o inicio da crença no sobrenatural, que não é mais do que ver intenção onde ela não existe. Isso provavelmente nasce connosco (2).
Resta-me agora terminar, depois de ter adiantado uma explicação simples, verificável na história e ciência para o argumento da intenção ou do desenho inteligente concluir que fazê-lo não é sequer lógico.
Pois se consideramos o "Fine Tuning" como argumento directo para intencionalidade, ao postularmos um criador para que seja a origem dessa intencionalidade passamos a ter de explicar em deus essa mesma intencionalidade. Porque tudo em deus parece ser ainda mais perfeitamente organizado para que possa criar um universo.
Na realidade, o argumento do "Fine Tuning" é só uma variante do argumento de S. Agostinho que diz que o universo é tão organizado que só pode ter tido um criador mais organizado que ele próprio. E que da origem sempre a termos de ter criadores para o criador até ao infinito.
A questão está em que explicar complexidade de uma entidade postulando uma entidade acima só "empurra para cima" a solução do problema. Se o universo é tão complexo que "aparenta Fine Tuning", como é que postular algo ainda mais complexo e inexplicável resolve o problema da origem da complexidade e "Fine Tuning"? Se o universo é tão complexo e afinado que parece ter sido concebido inteligentemente para um fim, como é que postular uma entidade ainda mais complexa e afinada resolve o problema?
Afinal o que é mais provável que surja do acaso, a entidade mais complexa ou a menos complexa? É que se é a primeira, não implica que deus existe, porque a complexidade não é um problema para explicar por si, teríamos de provar primeiro que deus existe então para presumindo que deus é mais complexo, explicar a segunda. Se é a segunda voltamos a não precisar de deuses porque aceitamos que o mais provável é o universo ter aparecido primeiro.
E agora a explicação do titulo, para quem não tiver ficado convencido. Eu não disse que era a refutação do argumento do "fine tuning". Essa só o conhecimento profundo do universo trará, conforme for mostrando porque é que as constantes têm o valor que têm, se o universo só pode ser este ou não, etc.
Isto é mostrar que o argumento do "Fine Tuning" é fraco e que há outras abordagens não só muito plausíveis, como mais consistentes com o que se sabe e pode saber. É desmistificar. Tornar mais claro e não tornar mais confuso.
Se o universo podia ser de outra maneira que não albergasse vida, é óbvio que não teria ninguém a questionar-se sobre esse problema. Se não podia então o problema nem se põe.
E para aqueles que estão a pensar na sorte deste universo ter aparecido pensem na sorte que foi entre milhares de espermatozóides e de óvolos que existem no universo se terem juntado logo os que davam origem a si. Fantastico, não? Há, e parabéns. Mas não esqueça que o universo não foi criado para a ténia e pela mesma razão, nem para si. Podia ter sido outro espermatozóide, ou outra constante...


(1) ler mais aqui e na bibliografia deste post:
http://cronicadaciencia.blogspot.com/2010/03/porque-e-que-os-liberais-e-ateus-sao.html


(2) : Neste post refiro um estudo pertinente para o assunto onde se sugere que a capacidade de reconhecer vida seja inata e possa por vezes dar falsos positivos:
http://cronicadaciencia.blogspot.com/2009/09/reconhecer-vida-e-inato.html


Nota: Há de facto evidencia cientifica que mostra que estruturas organizadas não precisam de ter origem numa mais organizada ainda. A entropia pode, raramente, andar para trás:
http://cronicadaciencia.blogspot.com/2010/02/consumo-de-entropia.html

Update: desde que escrevi este post foram publicados estes dois livros com interesse para o tema:

1 - Do Stephen Hawking, "O grande Designio", minha "review" aqui: http://cronicadaciencia.blogspot.com/2011/02/stephen-hawkings-and-leonard-mlodinow.html

2 - Do Victor Stenger, "A Falácia Do Fine-Tuning" aqui: http://cronicadaciencia.blogspot.com/2011/07/fallacy-of-fine-tuning-por-victor.html

7 comentários:

Anónimo disse...

Respondi ao teu desafio por estes dias no Ktreta:

"Antes de tudo, o erro de base da exposição saída da pena do João, é ele não perceber que o Fine Tuning não é um argumento, mas um facto científico."

Se quiseres ler o resto:
http://paiocomervilhas.blogspot.com/2010/05/cronica-da-pseudociencia.html

Fico à espera...

João disse...

Desculpa Jairo mas não considerei interessante a tua contra-argumentação.

Resumidamente:

Dizes que o fine-tuning é um facto. Não, é uma interpretação dos valores do universo relativos apenas à nossa existencia. É um antropocentrismo de Lineus.

Dizes que o universo é que foi criado para adaptar a vida em vez de a vida se ter adaptado ao universo que tinha. Bem, a evolução aponta precisamente no sentido da vida é qeu se adaptou.

E que é uma falacia genetica dizer que ver intencionalidade no dito fine-tuning é um erro frequente humano que não explico a origem...

Ok, esta explicada no post sobre porque os ateus são mais inteligentes.

Mas a razão é que achar que havia intencionalidade nos fenomenos naturais foi selecionada pela evolução porque o achar que "não é nada" deixou menos descendentes. Mais vale achar que o barulho nas ervas é um duende que nos quer comer que depois se revelar ser um lobo ....

Igualmente dar intenção ao vento e à chuva, etc. Tudo esta documentado em livros de antropologia. Ainda hoje acontece.

Anónimo disse...

"Desculpa Jairo mas não considerei interessante a tua contra-argumentação."

Ao fim de três meses conseguiste chegar a essa conclusão...

"Dizes que o fine-tuning é um facto. Não, é uma interpretação dos valores do universo relativos apenas à nossa existencia."

O primeiro parágrado do meu texto explica o porquê de ser um facto. Aqueles dados poderiam ser de outra forma, ou são inevitáveis?

"É um antropocentrismo de Lineus."

Para ti, dizer que nada obrigaria a teres ar respirável no planeta, porque seria o mais provável não o teres, é antropocentrismo?
Então, todo o pensamento sobre a realidade deve ser antropocentrismo para ti...

"Dizes que o universo é que foi criado para adaptar a vida em vez de a vida se ter adaptado ao universo que tinha."

Não disse PORRA nenhuma do que me atribuis. Distingui Fine Tuning, de Argumento Cosmológico, de Princípio Antrópico. Distinguir não é afirmar, sugiro que sejas mais honesto nos debates que pedes(foste tu quem, no Ktreta, me desafiaste a criticar o teu texto), mesmo que só dês respostas de três em três meses...

"Bem, a evolução aponta precisamente no sentido da vida é qeu se adaptou."

Ainda que fosse, como é que a vida se adaptaria a algo que não permitesse adaptação e sobrevivência alguma? É óbvio que,havendo vida, não importando para a dicussão se ela evolui ou não, essa vida é que está dependente das condições do meio, não é o meio, o Universo, que está dependente da vida para ser como é.

"E que é uma falacia genetica dizer que ver intencionalidade no dito fine-tuning é um erro frequente humano que não explico a origem..."

Afirmar que o fine tuning é falso, porque supostamente sabes como se originou a crença nele, é falácia genética, aqui ou na China, não importa se a origem que lhe atribuis é falsa ou errada.

"Ok, esta explicada no post sobre porque os ateus são mais inteligentes."

Os ateus não sei, mas tu não deves muito à inteligência.

"Mas a razão é que achar que havia intencionalidade nos fenomenos naturais foi selecionada pela evolução porque o achar que "não é nada" deixou menos descendentes."

Terias de provar isso e continuarias a cometer falácia genética.
E essa extrapoção darwinista já é absurda e impede qualquer debate sério sobre o que é verdadeiro ou falso, porque teríamos de concluir que nós também estamos presos a essas leis evolutivas, logo, para mim dizer que o Fine Tuning é facto científico dá-me vantagens de sobrevivência, e para ti, negar e dizer disparates é o que te beneficia. Mas mesmo esta conclusão não poderia ser verdadeira, porque já seria do interesse evolutivo de quem a pensasse, não necessariamente verdadeira, e por aí fora, rumo ao absurdo infinito.

"Mais vale achar que o barulho nas ervas é um duende que nos quer comer que depois se revelar ser um lobo ...."

Põe lá ordem nessa cabeça. Independentemente da tua superstição evolutiva que te torna um maluquinho do utilitarismo, ou o lobo estaria lá ou não, ou haveria um duende, ou não, etc. Por isso, foca a conversa no Fine Tuning, se é facto ou não, em vez de espantalhos sobre a utilidade da crença, como suposta e imebcil demonstração de que é falsa.

João disse...

Jairo:

Se la fui ao fim de 3 meses já é uma sorte. Não esperava grande coisa, porque havia de ter pressa? Para isto?

Isto resume tudo:

"Para ti, dizer que nada obrigaria a teres ar respirável no planeta, porque seria o mais provável não o teres, é antropocentrismo?"



Dizer que o facto de haver ar respiravel foi a pensar em nós é que é antropocentrismo.

Eu digo que nós, provavelmente, so nos podiamos desenvolver onde houvesse Oxigenio à grande. Mas repara como ele apareceu, ve no meu post. Não me parece nada elegante para quem fez isto a pensar em nós.

João disse...

O mais provavel é em outros planetas do universo haver condições semelahntes a esta e numa pequena percentagem desses haver vida.

E se o universo puder ser de outra maneira, provavelmente a vida tambem pode.

A vida surge com o aparecimento de um autoreplicador. Esse autoreplicador vai evoluir e explorar atravez de mutações todas as possibilidades que adaptação ao meio.


A parte mais dificil parece ser o aparecer o auto-replicador.

Aparentemente é raro. Mas na terra, depois da vida surgir invadiu tudo. Pesquisa extermofilos.

Se se provar que é preciso um O2 para ter energia para suster um cerebro, coisa que na terra o aparecimento de O2 ja não deixou acontecer, nunca saberemos.

Por esta altura era pouco provavel, mas se a inteligencia é algo que é uma vantagem adaptativa ela ia aparecer dado o tempo necessario.


Se a vida so puder aparecer em planetas replicas da terra, mesmo nesse caso, argumentar que o fine tuning é intencional , porque se não for tambem não faz sentido falar em afinação, é treta.

De qualquer modo, tens de facto de lutar contra tendencias primitivas e legados comportamentais ancestrais se queres ir mais longe na compreensão do universo.

João disse...

Tu estarias sempre espantado. Porque estas espantado com o facto da vida inteligente ter aparecido onde podia.

E podia porque estamos ca.

Achar que aquelas condições foram criadas so para nos existirmos é tolice.

E repara que falar em tuning requer sempre inferir intencionalidade.

Se não não ha tuning. Ha acaso e no universo todo as coisas aconteceram como podiam. Aqui puderam chegar aonde chegaram.

Não ha tuning sem interpretação dos valores.

Sem interpretação dos valores a conclusão que tiras é que a vida precisa de viver exactamente dentro dos parametros a que.... se conseguiu adaptar. E não é Lapalisse porque existem muitas maneiras diferentes como ela se adapatou.

Não é correcto dizer que esta afinado se ninguem afinou. Mas não insisto mais ai. Então digo-te. Não ha mesmo afinação.

Ha um encontro de variaveis e possibilidades.

A vida apareceu aonde podia (de facto considerar que aqui é o unico planeta onde estas condições se criaram é fantastico) e adaptou-se ao que podia.

João disse...

Jairo:

"Os ateus não sei, mas tu não deves muito à inteligência."

Não te preocupes que o teu deus tambem não. Então isto é o melhor que ele consegue fazer para haver vida inteligente?