terça-feira, 27 de novembro de 2012

Ainda há uns tempos a ciência dizia isto, agora diz aquilo...


Pois é. A ciência evolui. Vive de discussões cerradas de especialistas (1) que se preocupam com os mais infimos pormenores mas que regularmente chegam a consensos. Às vezes até consensos de que teorias que competem em determinados aspectos têm de ser provisóriamente aceites como o melhor que há. 

E a ciência é realmente isso. A procura do melhor que há para explicar as coisas. Não é o conjunto de certezas absolutas, nem a verdade ultima, a que aspiram os religiosos. Para a ciência, a verdade é apenas uma atribuição de valor a uma afirmação conforme o que ela se adequa à realidade ou não. E a realidade é aquilo que está lá para além daquilo que nós acreditamos ou não. Certezas é algo que quase de certeza sabemos que nunca teremos. 



Por duas razões. Primeiro pelo problema da indução que não tem solução racional completa e provavelmente nunca terá. David Hume apontou que o conhecimento por indução, ou seja, partir da observação de grandes numeros e fazer uma generalização teorica, tem sempre o problema de não termos acesso a todo o universo observavel. Deu como exemplo o facto de todos os naturalistas aceitarem que os cisnes eram brancos e nem sequer pensar duas vezes nisso, mas quando chegamos à austrália encontramos lá cisnes negros. Se dizemos que a gravidade é uma força atractiva é por indução e as formulas que criamos para a descrever são baseadas no que observamos por indução. Mas será que será sempre assim e em todo o lado? Por acaso até parece que não, pois há dados novos que sugerem isso e muito mais.

Este problema estende-se a todo o conhecimento empirico. Afinal tudo o que valida a indução é a própria indução. E isto é mau sinal, normalmente quando chegamos a regressões infinitas é porque é um beco sem saída. 

A outra razão que nos leva a ter uma confiança razoavel de que nunca vamos saber tudo, é o Teorema de Godel. Este senhor provou matemáticamente que nenhum sistema matemático pode ser completo e consistente ao mesmo tempo. Ou há coisas que o sistema matemático não abrange ou há contradições dentro dele próprio. E como a nossa ciência se baseia na matemática para descrever a realidade, sabemos que vão haver limitações. O mapa nunca passará a ser o território...

O que nada disto nos diz, é que não podemos saber nada. Alguma coisa parece que que podemos saber. E a primeira resposta bem sucedida (bem sucedida mas não definitiva, isso não temos) ao probelam da indução de Hume veio de Karl Popper, muito inspirado nas ideias de Einstein sobre a ciência. Popper disse que podiamos ter conhecimento ciêntifico se as nossas teorias fossem capazes de fazer previsões acertadas sobre coisas relacionadas. Se falhassem essas previsões não seria ciência. Se acertassem, embora não ultrapassasse completamente o problema de Hume, teriamos uma justificação forte para confiarmos nessa teoria. Porque isso mostra (ou no minimo sugere fortemente) que mais que conhecer a regra, temos algum conhecimento sobre o porquê dela existir. 

Mas havia ainda alguns problemas acerca da filosofia da ciência de Popper e ele passou os ultimos dias da sua vida a tentar resolvê-los. A questão é que o tipo de previsões que as teorias teriam de fazer não estava tão bem defenido como ele queria, uma vez que outro filsofo notou o que o que se testava muitas vezes eram realmente condições acessórias. Por outro lado, uma previsão que desse mau resultado poderia levar a  uma melhor teoria, depois de corrigida, e seria ingénuo deita-la fora ao primeiro revés. O falsificacionismo, o nome desta abordagem de Popper, não foi completamente abandonado e ainda é uma caracteristica da ciência mas agora sabemos mais sobre ele. Hoje além disso procuramos a consistencia na ciência através do tipo de consequencias que uma teoria tem. Se faz muitas previsões testáveis - novas hipoteses - que levem até à descoberta de novos dados, e por ultimo a novas teorias que se articulam com a origienal, formando um plano progressivo de investigação ou se por outro lado, leva a um programa degenerativo de investigação em que é preciso estar sempre a fazer alterações ad-hoc à teoria para ela funcionar. Lakatos foi quem pegou nas ideias de Popper e nos deu a filosofia da ciência moderna. Filosofia da ciência é o que tenta explicar o que é e como funciona a ciência e porque ela é tão bem sucedida. 


Por curiosidade, nem todos os grandes cientistas eram filosofos da ciência. Newton era, descreveu o que andava a fazer e apresentou o seu método. Einstein idem, aliás está na base das ideias que levam a Popper. Feynmein dizia que a filosofia da ciência era tão importante para os cientistas como a ornitologia era para os pássaros. Mas para nós, que estamos a tentar perceber porque devemos confiar na ciência, a filosofia da ciência é tão importante como a própria ciencia com que se confunde.



Em suma uma teoria ciêntifica tem de estar em conformidade com tudo o resto que se sabe, explicar a parte que lhe compete e fazer previsões impensaveis antes dessa teoria aparecer  - e ainda fazê-lo sistematicamente. Este é o elevado nível de exigencia que tem de ter uma teoria cientifica para ser aceite como tal. É a nossa garantia que estamos a fazer o melhor que podemos para ter conhecimento

Resolve todos os problemas epistémicos? Não, mas é o melhor que conseguimos. São tantas as exigências a favor de consistência em detrimento de um conhecimento mais completo que podemos confiar que o que sabemos, não sendo garantidamente para sempre, é o melhor que se pode fazer em cada momento.

E essa é a história da ciência. É a história curta mas extraordinaria de homens obcecados com saber o máximo possivel acerca das coisas mais especificas e da sua incrivel capacidade de articular o que sabem uns com os outros (embora por vezes com muito esforço...). E as peças encaixam. Não em tudo, mas na esmagadora maioria das coisas. E conforme se vai sabendo mais, e mais dados temos, melhores vamos poder fazer as nossas teorias. Se isso não acontecesse, poderia revelar por exemplo falta de abertura a novos dados, ausencia de discussão aberta entre ciêntistas e incapacidade de formar os tais campos de investigação progressiva. Como aliás acontece em outras formas de conhecimento pseudocientifico e na religião - não evoluiem quase nada: as discussões são autoritativas, escolhem os dados e teorias que lhes interessam por conformidade a dogmas iniciais e fazem vista grossa aos outros, não procuram criar teorias testáveis e muito menos programas de investigação. Por isso acabam com sistemas cognitivos fossilizados, cheio de inconsistencias com tudo o resto que se sabe, e que vivem apenas de serem atraentes emocionalmente.


Para além disso, e também por isso, a história da ciência é a história das melhores ideias no seu tempo. Raramente uma ideia cientifica, desde que a ciência é ciência, foi menos do que o melhor que se podia dizer sobre algo na altura em que essa teoria era aceite - a história da ciência é a história das melhores ideias possíveis. Mesmo que erradas, ou incompletas, eram o melhor que se podia saber. Tinham, para o que se sabia na epoca, a melhor justificação e mesmo visto da perspectiva  actual, ainda podemos confirmar isso. Excepto raras excepções, como a teimosia em aceitar a deriva dos continentes por exemplo.


Hoje temos, graças ao trabalho conjunto de tantas pessoas, cumprindo critérios extremamente exigentes de método, uma longevidade e uma liberdade impensáveis. As coisas que podemos fazer e fazemos de facto, seriam consideradas magia por povos mais antigos. A velocidade com que podemos viajar e comunicar, as doenças que conseguimos tratar, as coisas que descobrimos que aconteceram antes de cá estarmos, as previsões que fazemos sobre o que pode acontecer... Foi um grande avanço no conhecimento - e é pena e desastroso não se prestar mais atenção a isso. Em 200000 de humanidade, quase tudo o que temos, desde carros a computadores, apareceu graças aos ultimos 600 anos de progresso ciêntifico. Nem tinhamos como alimentar tanta gente só com métodos tradicionais - o preço da comida seria altíssimo. É uma história curta, mas extremamente bem sucedida no contexto da história humana. 

E por tudo isto, é pouco provavel que não estejamos a saber nada de nada, ainda que não tenhamos certezas, de seja o que for. Afinal o conhecimento humano será sempre justificado por conhecimento humano. É quase de certeza impossível fugir às regressões infinitas da auto-justificação inicial e resolver o problema de Hume. E o Teorema de Godel continua tão matemáticamente provado como quando Kurt Godel era vivo. 


Não ter certezas não quer dizer que vale tudo como sendo uma afirmação verdadeira. Quer dizer que temos de distinguir entre a validade das afirmações através da justificação que têm e escolher as melhores. E a cientifica, esta que aqui exponho, foi o melhor que encontrámos. Com todas as suas falhas, ainda é o que realmente funciona melhor.




(1) Na discussão cientifica estou a incluir não apenas a troca pública e privada de argumentos, mas também no peer-review que é parte importante do método cientifico e é uma espécie de discussão, ainda que não seja muito directa.

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